terça-feira, 7 de junho de 2016

Nasci mulher.

   Nasci mulher.

   Mas se pudesse escolher, teria nascido homem.

   E sequer digo isso por todas as diferenças fisiológicas que as mulheres encaram: cólicas, oscilações hormonais, parto. Digo isso por uma questão cultural que veio à tona recentemente e diversas vezes.
Sim, cultural. Ser mulher em uma sociedade de cultura machista e hipócrita não é fácil.

   E eu, que sempre me calo, cansei de ficar quieta. 
   Isso não é só mais um incômodo, passou a ser uma necessidade.
   Precisamos resolver isso.

   Sabe, aprendi, desde muito pequena, a ter medo pelo simples fato de ser menina. Não podia fazer coisas que meu irmão fazia por ser menina. Andar sozinha? Sem chance, nem sair para brincar. Amigos homens? Fui julgada até por outras meninas. Sair a noite? Até meus 18 ou 19 anos só se estivesse com meus pais, e mesmo depois disso, cada vez que saio escuto do meu pai frases do tipo “filha, não aceita bebida de ninguém”, “cuidado com o copo”, “quando chegar em casa me avisa”, “se tentarem levar o carro, entrega, mas por nada nesse mundo deixe que te coloquem dentro dele e te levem, grita, corre”, “toma cuidado na hora que chegar em casa, preste atenção na rua, pra ver se não tem ninguém estranho”. Agradeço os alertas que certamente evitaram que coisas ruins me acontecessem, claro, mas dói porque ele também tem medo que algo aconteça.

   Aprendi a ter medo, sim. Muito medo!

   Vivo em estado de alerta.

   Porque já estive em uma situação na qual um ex, após terminarmos, disse que “não ficaria desse jeito” e durante meses precisei mudar minha rotina e meus trajetos, evitando andar sozinha mesmo durante o dia. Porque já seguiram a mim e a uma prima na rua, porque já vi minha tia sangrar depois de uma briga com o namorado, porque já tentaram ficar comigo à força, porque já me morderam ou puxaram meu cabelo achando que isso me conquistaria, quando tudo isso me dá nojo e raiva (e ainda mais medo). Tenho medo porque alguém, num acesso de raiva durante uma briga pela internet, quebrou meus CDs e esmurrou uma porta, e acho que se eu estivesse perto, poderia ter sido meu braço. Morro de medo porque já ouvi inúmeros casos de agressão contra moças que reagiram à assédio, porque homens podem achar que são donos do mundo e de mim. Vivo com medo porque uma mulher andando sozinha está sujeita a situações perigosas que um homem andando sozinho não está. Porque sou mulher, simplesmente... Por que? Porque...

   Preciso continuar listando meus motivos? Ainda tenho muitos.

   Meus pais não deveriam precisar passar por isso (nem os de ninguém), não deveriam se sentir mal por saber que tantas coisas já me aconteceram apesar de todos os cuidados que tomaram, afinal, eu cresci e eles não podem me manter em uma bolha de vidro e me proteger de tudo, certo?
   Coisas ruins acontecem o tempo todo.

   Mas sabe o que é pior? Se algo pior acontecesse comigo, acho que muitos diriam que eu estava onde não deveria. Como se isso justificasse. A culpa seria minha.

   Só que não.

   Mulheres não têm o mesmo direito de ir e vir. Não seja hipócrita. Está ai pra todo mundo ver.
   Mulheres não são vistas como iguais, não têm os mesmo direitos, não são respeitadas, não têm voz, não têm poder de decisão sobre seus corpos, ainda têm suas recusas ignoradas, ainda têm seu espaço pessoal violado, ainda são culpadas por crimes de outros, ainda são vítimas dentro de suas próprias casas, dentro de ambientes onde, supostamente, nada de ruim deveria acontecer.

   E ainda dizem que a luta por direitos iguais é desnecessária, que lutamos por isso, quando no fundo queremos que tudo seja como antes.

   Tente viver com medo, depois conversamos.

   Como eu disse, ser mulher nesse mundo não é fácil: se gosta de sair com as amigas? Bebe? Não quer ter filhos? Não quer casar? Acha que as atividades domésticas têm que ser divididas? Transa antes do casamento? Acredita que a responsabilidade de cuidar da casa e da família é compartilhada? Não serve. É biscate. Merece ser estuprada.

   Não venha me dizer que não é assim, já falaram isso pra mim, mais de uma pessoa e em situações diferentes.  E eu já julguei em algumas situações, mas só porque não estava acontecendo comigo. Falha minha, também sou humana.

   A questão é: sou mulher, estudante, busco minha independência financeira, quero ter casa e carro próprios, não sei se quero casar ou ter filhos, quero viajar (e queria poder fazer isso sozinha, mas não posso), quero sair pra dançar e voltar pra casa bem e, acima de tudo, quero segurança.


   Porque tenho medo.


Giovana Renoldi